Todo designer, em algum momento da carreira, já debateu ou parou para pensar se design é ou não é arte. Essa discussão é longa, acalorada e, para falar a verdade, costuma ser também improdutiva. No fundo, perguntar se o design é ou não arte, como se houvesse uma resposta absoluta, não faz muito sentido. É mais rico tentarmos entender como o design pode aproximar-se da arte, a partir de certos processos ou, até mesmo, certas definições de design, e como ele pode se afastar também. Por isso é tão interessante a abordagem de Bruno Munari, designer italiano que escreveu um dos textos mais clássicos da história do design.
Esse é o “Design como arte”, livro muito influente na teoria do design e que, como diz o título, pensa o design como arte. Veja que o ponto não é afirmar que o design é arte, mas tomar como inspiração formas de pensar que vêm do mundo da arte e que podem inspirar o design. Isso tudo sem ofuscar as particularidades do design. Inclusive, a influência anda na direção contrária também, com o design podendo transformar processos da arte.
Bruno Munari nasceu em Milão, em 1907, e viveu o século XX quase inteiro, falecendo em 1998. Isso quer dizer que ele testemunhou o momento de formação do design como campo profissional desde o início (não a formação do design, que fique claro, porque essa polêmica fica para outro texto, mas o período no qual ele se torna uma profissão, um título, uma graduação, uma área de interesse da História, etc.). O livro "Design como arte" foi publicado pela primeira vez em 1971 – e só em 2024 ganhou a primeira edição brasileira, pela editora Cobogó, com tradução de Feiga Fiszon. Nele, Munari reflete sobre várias implicações sociais, funcionais e estéticas do design.
Narrando sua trajetória profissional no livro, Munari conta que ele mesmo fez a transição de artista para designer, e por isso acaba tendo fluência nos dois campos, conseguindo misturar os dois. Além disso, a própria localização histórica desse livro pode esclarecer boa parte do seu conteúdo. O autor nasceu em uma época em que o design não estava ainda muito bem estabelecido. Pouco tempo antes do seu nascimento, por exemplo, podemos lembrar, no final do século XIX, do movimento Arts and Crafts (Artes e Ofícios), considerado por muitos como um dos marcos inaugurais do design – e que, na época, estava falando em arte para se referir ao que hoje chamamos de design.
O design já passou por diversas nomenclaturas ligadas à arte: “artes aplicadas”, “artes mecânicas”, “artes decorativas”, “arte aplicada”, “arte comercial” e até “arte menor” são alguns dos nomes que ele já teve. Por séculos e séculos, o termo arte era entendido como qualquer tipo de saber prático. Ou seja, quem quiser defender com unhas e dentes que, em definitivo, design não é arte vai ter alguns problemas com a história.
Voltando a Munari, o que é interessante ver é que ele estava muito próximo desse momento histórico em que não havia uma separação entre arte e design. A partir daí, a história dele vai caminhando junto com a história do design, até chegar no ponto em que ele já é uma área bem delimitada (ao menos, na Europa e Estados Unidos), com certas regras e processos próprios. Então, o que ele narra no livro é justamente esse período de transição no qual o design vai tentando (e conseguindo) criar uma identidade própria.
Já no prefácio ele fala que o artista da época (meados do século XX) está encarando a necessidade de se reinventar. De sair dos museus, da aura de gênio, da redoma da “obra-prima” e se envolver com o cotidiano, levando sua obra para perto das pessoas. A conclusão dele, portanto, é que o artista está se transformando no designer (que, na definição dele, é um “projetista com senso estético”). Essa ideia, inclusive, é muito próxima do que pensavam, justamente, os ingleses do movimento Arts and Crafts. Eles não falavam em “designer”, mas buscavam resgatar o papel do artista-artesão na sociedade, que tinha ficado escanteado a partir da Revolução Industrial. Mas Munari, no livro, foca na fundação da Bauhaus (1919) como a origem do design.
O primeiro exemplo de Munari no livro é de um trabalho dele mesmo (de 1933, quando ainda era um jovem artista), o das “máquinas inúteis”, que são como móbiles pendurados no teto que se movimentam junto ao ar e, a partir do movimento das peças, automaticamente criam novas composições e projetam diferentes sombras nas paredes. Elas são consideradas design por Munari por dois motivos: primeiro, representam a arte que sai da parede e dos museus e se mistura com os cenários do dia a dia; segundo, pois são projetadas com um sistema, como engrenagens que acionam outras. Apesar de levarem o título de inúteis, essas máquinas são um tipo de arte “usável” (nesse sentido, será que poderíamos fazer a analogia reversa e pensar que há um quê de design nos famosos parangolés de Hélio Oiticica, por exemplo?).
As “máquina inúteis” de Munari
O título do livro e o exemplo das máquinas inúteis (já nas primeiras páginas) podem até fazer parecer, à primeira vista, que a principal preocupação de Munari seja principalmente com a arte, ou com um tipo de design abstrato, expressivo, “artístico”. Mas esse não é o caso. O livro é dividido em cinco partes (Designers e estilistas, Design visual, Design gráfico, Design industrial e Pesquisa de design) e, nelas, Munari passa pelos mais diversos objetos (ou conceitos) de design, equilibrando estudos teóricos e empíricos. Mais do que isso, em grande parte do livro Munari trata o design como conhecimento “duro”, ou seja, que pretende alcançar uma objetividade, longe da subjetividade que geralmente associamos à arte.
Esse é outro aspecto que faz os textos revelarem sua localização histórica. Bem à moda modernista, Munari fala sobre os objetos de design de uma forma idealista, a função como essência e que a forma deve apenas revelar tal essência – o designer apenas tentaria chegar à forma sugerida pelo objeto “em si”. Ele defende, por exemplo, que, no design, a beleza de um objeto surge “graças à lógica da sua construção e à precisão da solução encontrada para seus diversos componentes”. Então, não seriam as qualidades estéticas que fariam um objeto belo, mas sua adequação a uma proposta de funcionamento.
Na maior parte do livro, portanto, Munari propõe formas de aplicar as regras objetivas que ele considera que deveriam guiar o design, desde o desenho de um talher até um logotipo. Além de conceitos de design que ainda se mantêm relevantes, o que o leitor de hoje, provavelmente, vai tirar de mais proveitoso da obra de Munari é justamente a riqueza do documento histórico que ele nos deixou. Podemos sentir, com cada capítulo, a vibração de um design que estava, à época, acessando lugares e ganhando uma relevância conquistada há pouquíssimo tempo. Entendendo isso, conseguimos entender também o sentido que havia na busca por criar regras para essa “nova” profissão.
Também vale notar que, mesmo hoje em dia, a abordagem de Munari ainda seria capaz de conquistar desafetos dos dois lados. Em uma ponta, a arte não costuma aceitar ser associada a um tipo de trabalho que é comercial e que possui um uso claro, como o design. Na outra ponta, um grande número de designers também não gosta de se associar à arte, entendida como subjetiva e sem parâmetros claros de avaliação, preferindo pensar que a capacidade do design de “resolver problemas” concretos é mais interessante. Ter conseguido desenvolver uma abordagem – tanto para a arte, como para o design – que supera esses antagonismos é outro mérito de Munari que não podemos ignorar.